Comida de verdade: nutrindo as pessoas e a agricultura familiar

Alimentar-se com produtos da agricultura familiar e cozinhar é um ato político

Escrito por: Caroline Nascimento Pereira| Nexo Jornal • Publicado em: 27/01/2021 - 11:25 Escrito por: Caroline Nascimento Pereira| Nexo Jornal Publicado em: 27/01/2021 - 11:25

“Voltar a cozinhar é um ato político”. Essa frase poderia sintetizar grande parte das discussões do professor, escritor e ativista Michael Pollan, que possui uma voz ressonante no ativismo político alimentar para além das salas de aula das universidades de Berkeley e Harvard, onde leciona. A defesa do alimento “de verdade” e o retorno das pessoas à cozinha para o preparo de suas refeições é sua principal bandeira. E ele está completamente certo.

Durante os anos do “american way of life” no pós-guerra, um novo padrão de consumo baseado na industrialização foi implementado, alterando os hábitos alimentares da sociedade americana e de vários países que reproduziram esse comportamento. Um novo paradigma alimentar foi adotado, fomentado pela ideia de modernidade e pelo nutricionismo, que enfatizava os nutrientes mais do que os alimentos, como achocolatados enriquecido com ferro e vitaminas, apesar da excessiva quantidade de açúcares. E tudo isso foi feito graças aos meios de propaganda, que conseguiram massificar nos lares a ideia de que o alimento industrializado era melhor, mais higiênico e mais nutritivo.

Desde então, o suposto interesse pela composição dos alimentos cresceu. Porém, ao mesmo tempo em que as pessoas leem rótulos elencando nutrientes bons ou ruins, nunca a sociedade engordou tanto. Vivemos uma epidemia de obesidade no Brasil. Se antigamente ser gordo era característica de pessoas mais ricas, a situação se inverteu. E as grandes empresas alimentícias têm grande culpa neste processo. Um ensaio publicado no jornal The New York Times mostra como essas empresas vem viciando a população em “junk food” (comida não saudável) nos países em desenvolvimento, frente à redução de mercado nos países desenvolvidos.

Apenas dez empresas dominam – ou, melhor, monopolizam – o mercado mundial de alimentos. Segundo a Oxfam, Nestlé, Pepsico, Associated British Foods, Kellogs, Danone, Unilever, General Mills, Mars, Coca Cola e Mondelez produzem grande parte da comida que está à disposição da população. Com isso, a afirmativa de Pollan se faz ainda mais importante. Cozinhar significa ter independência e autonomia em relação a essas grandes empresas.

A escolha por alimentos não industrializados é saudável e política. As empresas ao entregarem um alimento para o consumidor decidem quais produtores serão apoiados, que tipo de alimento será cultivado e quais ingredientes e aditivos serão embutidos na sua comida. Assim, quando as pessoas escolhem não terceirizar a sua alimentação para as grandes indústrias, elas exercem influência sobre a agricultura, com rebatimentos nos produtores locais e no uso de recursos naturais, como a água.

O Brasil ainda possui uma dieta diversificada, fruto de uma urbanização tardia e da rica cultura alimentar que nos caracteriza de Norte a Sul. Entretanto, o consumo de alimentos processados e ultraprocessados vem aumentando constantemente. Comprovando este fato, desde o começo da quarentena no Brasil devido à pandemia de covid-19, o consumo de alimentos não saudáveis puxou a alta das vendas dos supermercados.

COM A QUEDA NO CONSUMO DE COMIDA DE VERDADE DURANTE A QUARENTENA, A RENDA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAIU MAIS DO QUE A RENDA DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS

Talvez a realidade venha se mostrando um pouco diferente do otimismo inicial, de que as pessoas se alimentariam melhor durante a quarentena. Segundo a ConVid Pesquisa Comportamental, realizada pela Fiocruz (Fundação Oswald Cruz), as pessoas estão comendo mais salgadinhos (snacks), chocolates, leite condensado, molhos prontos, pão de queijo, congelados, hambúrgueres, entre outros alimentos ultraprocessados. E não bastasse o crescimento destes alimentos ricos em energia e pobres em nutrientes, a venda de frutas, verduras e legumes apresentou queda em relação ao período anterior à pandemia. Ou seja, as pessoas estão comendo mais, porém mal.

Mas como saber o que são alimentos processados e ultraprocessados? De acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira, os alimentos se dividem em alimentos in natura, minimamente processados, processados e ultraprocessados. Os primeiros são obtidos diretamente de plantas ou animais e não sofrem qualquer alteração até chegar ao consumidor. Os alimentos minimamente processados são os alimentos in natura submetidos a processos diversos (limpeza, moagem, secagem, congelamento etc.) sem adição de substâncias ao alimento original, como sal, açúcar, óleos, gorduras. Como exemplo temos os vegetais, farinhas, carnes, leites, ovos etc.

Os processados incluem a adição de substâncias, como sal ou açúcar, aos alimentos in natura para aumentar a durabilidade e/ou alterar o sabor. Entre esses estão os vegetais em conserva, molhos de tomate, queijos e pães.

E, por fim, os ultraprocessados, que são formulações industriais produzidas em grande medida por substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas), ou seja, matéria-prima barata, com aditivos para dar cor, sabor e textura, tornando o alimento palatável. Um exemplo clássico são os miojos.

Os aditivos são utilizados massivamente na indústria pois colaboram para aumentar os lucros, visto que são insumos demasiadamente baratos, como afirma o professor Carlos Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo). São mais de 2.000 aditivos aprovados no Brasil, que misturados aos insumos básicos fornecem uma infinidade de “alimentos” pobres em nutrientes, mas com rótulos instigantes e cheio de informações para convencer o consumidor que está comprando um leite com cálcio, como se o leite naturalmente não tivesse cálcio.

No Brasil, a indústria de ultraprocessados nada de braçada. Desde a Revolução Verde ocorrida nos anos 1970 deixamos de ser importadores de alimentos para nos tornarmos exportadores de commodities, como soja, milho e cana-de-açúcar. E estes são a base dos alimentos não saudáveis, pois destes se obtém óleo, carboidrato e açúcar.

Em contrapartida, os agricultores familiares não contaram com mecanismos de incentivos na mesma proporção. Somente nos anos 1990 que se delineou políticas específicas para estes produtores, como o Pronaf (Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar), tendo em vista que os agricultores familiares são os responsáveis por produzir grande parte da comida de verdade que comemos ou deveríamos comer, como hortaliças, frutas e alguns grãos, como feijão.

Dos estabelecimentos agropecuários brasileiros produtores de hortaliças, 83% são cultivados por agricultores familiares e geraram renda de R$ 5,2 bilhões em 2017, segundo o Censo Agropecuário 2017. Metade dos agricultores familiares estão nas regiões Sul e Sudeste, porém o valor da produção nestas duas regiões supera em 70% do total produzido no Brasil. Se considerar apenas o critério de área, ou seja, independentemente de ser familiar ou patronal, ainda assim, esses produtos são cultivados em estabelecimentos com menos de 10 hectares em 70% dos casos.

Entre as dezenas de hortaliças produzidas no Brasil, como abobrinha, batata doce, berinjela, beterraba, couve-flor, morangos, a participação da agricultura familiar é preponderante. Outros itens comuns à mesa dos brasileiros que fogem da regra de alimentos processados e ultraprocessados, como abóbora, feijão, mandioca, também são produzidos em grande medida pela agricultura familiar.

Com a queda no consumo de comida de verdade durante a quarentena, a renda dos agricultores familiares caiu mais do que a renda das famílias brasileiras. Segundo dados da Pnad-Covid (pesquisa emergencial elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para acompanhar os impactos da pandemia), mais da metade dos agricultores familiares brasileiros tiveram redução de 35% ou mais de sua renda. E a situação é ainda mais crítica na região Centro-Sul, em que essa queda pode chegar a 50%.

Deste modo, entre os fatores que explicam a situação mais vulnerável dos agricultores familiares, principalmente durante a pandemia, estão a queda na renda das famílias, falta de políticas específicas para conter a crise do setor e, não menos importante, o comportamento dos consumidores. Como diz Pollan: “É fácil culpar o fazendeiro, mas nós demandamos um certo tipo de produto. Somos cúmplices.” Ou seja, muitas pessoas falam que são contra o agronegócio, mas escolher produtos da agricultura familiar e cozinhar sua própria refeição em vez de comprar alimentos processados e ultraprocessados pode ser um ativismo em prol dos pequenos produtores, do meio ambiente e da nossa saúde muito mais honesto e eficaz.

Caroline Nascimento Pereira é economista e doutora em desenvolvimento econômico na área de economia agrícola. Atualmente é pesquisadora no Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Título: Comida de verdade: nutrindo as pessoas e a agricultura familiar, Conteúdo: “Voltar a cozinhar é um ato político”. Essa frase poderia sintetizar grande parte das discussões do professor, escritor e ativista Michael Pollan, que possui uma voz ressonante no ativismo político alimentar para além das salas de aula das universidades de Berkeley e Harvard, onde leciona. A defesa do alimento “de verdade” e o retorno das pessoas à cozinha para o preparo de suas refeições é sua principal bandeira. E ele está completamente certo. Durante os anos do “american way of life” no pós-guerra, um novo padrão de consumo baseado na industrialização foi implementado, alterando os hábitos alimentares da sociedade americana e de vários países que reproduziram esse comportamento. Um novo paradigma alimentar foi adotado, fomentado pela ideia de modernidade e pelo nutricionismo, que enfatizava os nutrientes mais do que os alimentos, como achocolatados enriquecido com ferro e vitaminas, apesar da excessiva quantidade de açúcares. E tudo isso foi feito graças aos meios de propaganda, que conseguiram massificar nos lares a ideia de que o alimento industrializado era melhor, mais higiênico e mais nutritivo. Desde então, o suposto interesse pela composição dos alimentos cresceu. Porém, ao mesmo tempo em que as pessoas leem rótulos elencando nutrientes bons ou ruins, nunca a sociedade engordou tanto. Vivemos uma epidemia de obesidade no Brasil. Se antigamente ser gordo era característica de pessoas mais ricas, a situação se inverteu. E as grandes empresas alimentícias têm grande culpa neste processo. Um ensaio publicado no jornal The New York Times mostra como essas empresas vem viciando a população em “junk food” (comida não saudável) nos países em desenvolvimento, frente à redução de mercado nos países desenvolvidos. Apenas dez empresas dominam – ou, melhor, monopolizam – o mercado mundial de alimentos. Segundo a Oxfam, Nestlé, Pepsico, Associated British Foods, Kellogs, Danone, Unilever, General Mills, Mars, Coca Cola e Mondelez produzem grande parte da comida que está à disposição da população. Com isso, a afirmativa de Pollan se faz ainda mais importante. Cozinhar significa ter independência e autonomia em relação a essas grandes empresas. A escolha por alimentos não industrializados é saudável e política. As empresas ao entregarem um alimento para o consumidor decidem quais produtores serão apoiados, que tipo de alimento será cultivado e quais ingredientes e aditivos serão embutidos na sua comida. Assim, quando as pessoas escolhem não terceirizar a sua alimentação para as grandes indústrias, elas exercem influência sobre a agricultura, com rebatimentos nos produtores locais e no uso de recursos naturais, como a água. O Brasil ainda possui uma dieta diversificada, fruto de uma urbanização tardia e da rica cultura alimentar que nos caracteriza de Norte a Sul. Entretanto, o consumo de alimentos processados e ultraprocessados vem aumentando constantemente. Comprovando este fato, desde o começo da quarentena no Brasil devido à pandemia de covid-19, o consumo de alimentos não saudáveis puxou a alta das vendas dos supermercados. COM A QUEDA NO CONSUMO DE COMIDA DE VERDADE DURANTE A QUARENTENA, A RENDA DOS AGRICULTORES FAMILIARES CAIU MAIS DO QUE A RENDA DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS Talvez a realidade venha se mostrando um pouco diferente do otimismo inicial, de que as pessoas se alimentariam melhor durante a quarentena. Segundo a ConVid Pesquisa Comportamental, realizada pela Fiocruz (Fundação Oswald Cruz), as pessoas estão comendo mais salgadinhos (snacks), chocolates, leite condensado, molhos prontos, pão de queijo, congelados, hambúrgueres, entre outros alimentos ultraprocessados. E não bastasse o crescimento destes alimentos ricos em energia e pobres em nutrientes, a venda de frutas, verduras e legumes apresentou queda em relação ao período anterior à pandemia. Ou seja, as pessoas estão comendo mais, porém mal. Mas como saber o que são alimentos processados e ultraprocessados? De acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira, os alimentos se dividem em alimentos in natura, minimamente processados, processados e ultraprocessados. Os primeiros são obtidos diretamente de plantas ou animais e não sofrem qualquer alteração até chegar ao consumidor. Os alimentos minimamente processados são os alimentos in natura submetidos a processos diversos (limpeza, moagem, secagem, congelamento etc.) sem adição de substâncias ao alimento original, como sal, açúcar, óleos, gorduras. Como exemplo temos os vegetais, farinhas, carnes, leites, ovos etc. Os processados incluem a adição de substâncias, como sal ou açúcar, aos alimentos in natura para aumentar a durabilidade e/ou alterar o sabor. Entre esses estão os vegetais em conserva, molhos de tomate, queijos e pães. E, por fim, os ultraprocessados, que são formulações industriais produzidas em grande medida por substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas), ou seja, matéria-prima barata, com aditivos para dar cor, sabor e textura, tornando o alimento palatável. Um exemplo clássico são os miojos. Os aditivos são utilizados massivamente na indústria pois colaboram para aumentar os lucros, visto que são insumos demasiadamente baratos, como afirma o professor Carlos Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo). São mais de 2.000 aditivos aprovados no Brasil, que misturados aos insumos básicos fornecem uma infinidade de “alimentos” pobres em nutrientes, mas com rótulos instigantes e cheio de informações para convencer o consumidor que está comprando um leite com cálcio, como se o leite naturalmente não tivesse cálcio. No Brasil, a indústria de ultraprocessados nada de braçada. Desde a Revolução Verde ocorrida nos anos 1970 deixamos de ser importadores de alimentos para nos tornarmos exportadores de commodities, como soja, milho e cana-de-açúcar. E estes são a base dos alimentos não saudáveis, pois destes se obtém óleo, carboidrato e açúcar. Em contrapartida, os agricultores familiares não contaram com mecanismos de incentivos na mesma proporção. Somente nos anos 1990 que se delineou políticas específicas para estes produtores, como o Pronaf (Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar), tendo em vista que os agricultores familiares são os responsáveis por produzir grande parte da comida de verdade que comemos ou deveríamos comer, como hortaliças, frutas e alguns grãos, como feijão. Dos estabelecimentos agropecuários brasileiros produtores de hortaliças, 83% são cultivados por agricultores familiares e geraram renda de R$ 5,2 bilhões em 2017, segundo o Censo Agropecuário 2017. Metade dos agricultores familiares estão nas regiões Sul e Sudeste, porém o valor da produção nestas duas regiões supera em 70% do total produzido no Brasil. Se considerar apenas o critério de área, ou seja, independentemente de ser familiar ou patronal, ainda assim, esses produtos são cultivados em estabelecimentos com menos de 10 hectares em 70% dos casos. Entre as dezenas de hortaliças produzidas no Brasil, como abobrinha, batata doce, berinjela, beterraba, couve-flor, morangos, a participação da agricultura familiar é preponderante. Outros itens comuns à mesa dos brasileiros que fogem da regra de alimentos processados e ultraprocessados, como abóbora, feijão, mandioca, também são produzidos em grande medida pela agricultura familiar. Com a queda no consumo de comida de verdade durante a quarentena, a renda dos agricultores familiares caiu mais do que a renda das famílias brasileiras. Segundo dados da Pnad-Covid (pesquisa emergencial elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para acompanhar os impactos da pandemia), mais da metade dos agricultores familiares brasileiros tiveram redução de 35% ou mais de sua renda. E a situação é ainda mais crítica na região Centro-Sul, em que essa queda pode chegar a 50%. Deste modo, entre os fatores que explicam a situação mais vulnerável dos agricultores familiares, principalmente durante a pandemia, estão a queda na renda das famílias, falta de políticas específicas para conter a crise do setor e, não menos importante, o comportamento dos consumidores. Como diz Pollan: “É fácil culpar o fazendeiro, mas nós demandamos um certo tipo de produto. Somos cúmplices.” Ou seja, muitas pessoas falam que são contra o agronegócio, mas escolher produtos da agricultura familiar e cozinhar sua própria refeição em vez de comprar alimentos processados e ultraprocessados pode ser um ativismo em prol dos pequenos produtores, do meio ambiente e da nossa saúde muito mais honesto e eficaz. Caroline Nascimento Pereira é economista e doutora em desenvolvimento econômico na área de economia agrícola. Atualmente é pesquisadora no Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).



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