Novas regras e preço do leite pressionam pequenos produtores
Critérios de qualidade ficaram mais rígidos com instruções normativas 76 e 77
Escrito por: Reprodução: Gauchazh • Publicado em: 31/10/2019 - 17:46 • Última modificação: 31/10/2019 - 17:51 Escrito por: Reprodução: Gauchazh Publicado em: 31/10/2019 - 17:46 Última modificação: 31/10/2019 - 17:51Divulgação Crise do Leite
Todos dias antes de o sol raiar, Rosi de Lima Costa, 53, acorda para ordenhar as vacas da pequena propriedade rural, em Santana do Livramento, na Fronteira Oeste. A atividade garante a renda mensal de R$ 1 mil para a família de cinco pessoas.
O valor é a diferença entre o recebido da indústria e os gastos de produção. O litro de leite é vendido a R$ 1, enquanto os custos somam R$ 0,90, incluindo medicamentos para as vacas e despesas com energia elétrica. A família comercializa 5 mil litros por mês.
— A gente se sente muito prejudicado, humilhado e desestimulado — diz a produtora sobre o preço recebido.
A situação é semelhante a de outros 400 leiteiros cooperados da região de Livramento e se repete em Santa Catarina e Paraná. Juntos, os três Estados são responsáveis pela maior parte do leite produzido no país.
Porém, o cenário tem se agravado para os pequenos, como a família Costa. As instruções normativas 76 e 77 do Ministério da Agricultura alteraram exigências para a produção. As regras valem desde maio, mas penas só serão aplicadas a partir de novembro.
Os produtores se sentem prejudicados pela mudança da temperatura limite do leite ao chegar à indústria. Antes, podia chegar a 10ºC. Agora, a 7ºC. Outras alterações, que envolvem assistência técnica veterinária e contagem bacteriana, já são cumpridas.
— O leite vai até um laticínio de Boa Vista do Sul, são 500 km de distância. Mandamos para Pelotas, outros 350 km. Estamos entregando na temperatura certa, mas não começou o verão — diz Rosi.
Na temperatura até então aceita, o leite permanecia próprio para consumo, diz o Ministério. Para a pasta, “não se trata só de leite próprio ou impróprio ao consumo, mas da qualidade da matéria-prima que refletirá no produto que chega ao consumidor”.
O coordenador da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf-Sul), que abrange os três Estados sulistas, Alexandre Bergamin, diz que a maior parte dos produtores está distante dos centros urbanos, onde estão os laticínios. Para ele, o governo não se preocupou em adotar política de fomento e organização da atividade.
— Criou a lei e disse aos agricultores: se virem — opina.
Com propriedade em Chapecó (SC), a família de Bergamin produz queijos como alternativa.
— Concordamos com as melhorias de índices de qualidade, mas as normativas devem gerar o menor impacto possível — diz Elizandro Krajczyk, coordenador da Fetraf no Paraná, onde 110 mil famílias dependem da atividade.
Cuidado no recebimento
O ministério alega que a “temperatura de recebimento não é problema a ser resolvido pelos produtores, mas pela indústria” e que “a normativa prevê que o leite pode excepcionalmente ser recebido a 9ºC, no caso de haver contratempos no transporte”.
Representante da indústria, Alexandre Guerra, presidente do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados no RS (Sindilat-RS), confirma que são as empresas responsáveis por buscar o leite nas cooperativas. Porém, a norma impacta o produtor:
— Para o leite entrar na indústria a 7ºC, temos de pegar o produto com 4ºC. Temos caminhões resfriados, mas, dependendo da região, produtores enfrentam dificuldades com energia elétrica, que precisa ter qualidade. Há ainda problemas com estradas.
As mudanças geraram protestos. Em Porto Alegre, duas vacas caminharam pelas ruas do centro no último dia 15, para chamar atenção ao problema. Parlamentares ligados ao setor, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e Fetraf pedem que o Ministério da Agricultura suspenda temporariamente as normas.
A alteração pode levar mais produtores a deixarem o leite. Segundo o engenheiro agrônomo Lorildo Aldo Stock, da Embrapa Gado de Leite, os Estados do Sul perderam 55 mil produtores entre 2013 e 2018. O número caiu de 315 mil para 260 mil, redução média de 11 mil ao ano.
— Não é trabalho fácil. Não tem folga de Natal, Ano Novo, não tem pausa. Muitos produtores começam a ficar velhos e às vezes não têm sucessão porque os filhos saem para estudar na cidade — diz Stock.
Outros estão ficando sem clientes. Isso porque os laticínios têm aproveitado a rigidez nas regras para optar por fornecedores maiores, explica Krajczyk, da Fetraf do Paraná.
Essa exclusão direciona a produção brasileira para a exportação, segundo Bergamin, da Fetraf Sul, o que deve comprometer o mercado interno: “vão colocar os robôs para tirar leite. Não conseguimos entender como uma política de governo exclui gente”.
— Se pararmos com o leite, o que vamos fazer? Vamos ver de novo o êxodo rural. Isso só vai ampliar as favelas com fome e miséria — lamenta Rosi.