Em um mundo já faminto, covid-19 potencializa ‘vírus da fome’, diz Oxfam
A estimativa é de que o número de pessoas “em situação de crise de fome” cresça mais de 80% e atinja 270 milhões. Brasil, que em 2014 deixou o Mapa da Fome, pode se tornar um dos epicentros globais
Escrito por: Por Vitor Nuzzi, da RBA • Publicado em: 09/07/2020 - 10:18 • Última modificação: 09/07/2020 - 11:01 Escrito por: Por Vitor Nuzzi, da RBA Publicado em: 09/07/2020 - 10:18 Última modificação: 09/07/2020 - 11:01CONTRAF-BRASIL/CUT
Pobreza, pandemia e um sistema “viciado” de produção de alimentos farão com que neste ano morram mais pessoas de fome do que em consequência de covid-19, segundo projeção da Oxfam. A doença impulsiona o problema. No informeVírus da Fome: Como o coronavírus está potencializando a fome em um mundo faminto, lançado nesta quarta-feira (8), a organização estima que até 12 mil pessoas poderão morrer de fome, por dia, neste ano. E o Brasil está entre os prováveis epicentros globais.
“A covid-19 é a última gota para milhões de pessoas que já lutam dia após dia com os impactos causados por conflitos armados, mudança climática, desigualdades e um sistema viciado de produção de alimentos, que permitiu que os oito maiores fabricantes de alimentos e bebidas pagassem mais de US$ 18 bilhões a acionistas desde janeiro, conforme a pandemia se espalhava pelo mundo”, afirma a diretora executiva da Oxfam Brasil, Katia Drager Maia. “Esse valor é 10 vezes maior que a quantia que a ONU diz ser necessária para acabar com a fome no planeta.”
De acordo com o relatório, a pandemia “jogou lenha na fogueira” em uma crise que já vinha se acirrando. No ano passado, a estimativa era de que 821 milhões de pessoas sofriam de insegurança alimentar. Eram 149 milhões – número obtido com base em dados de 79 países – na chamada situação de crise de fome, definida quando existe alta deficiência no consumo de alimentos, revelando desnutrição aguda e elevada mortalidade.
Desigualdade e clima
“Agora, o coronavírus intensificou os impactos de conflitos, da desigualdade e da crescente crise climática, abalando as estruturas de um sistema alimentar global já falido e deixando um contingente adicional de milhões de pessoas à beira da fome”, diz a Oxfam. A estimativa do Programa Mundial de Alimentos (PMA) é de que o total de pessoas em situação de crise de fome aumentará 81%, para 270 milhões.
“Isso significa que, antes do final do ano, de 6.100 a 12.200 pessoas poderão estar morrendo de fome a cada dia em decorrência dos impactos sociais e econômicos da pandemia, talvez mais do que as que estarão morrendo todos os dias nessa altura devido à doença”, afirma a organização no informe. Ainda de acordo com a Oxfam, a taxa de mortalidade diária global, pela covid-19, atingiu o nível mais alto em abril: acima de 10 mil óbitos. Desde então, vem variando de 5 mil a 7 mil.
“Embora não se possa ter certeza sobre projeções para o futuro, se essas tendências não forem significativamente revertidas ao longo do restante do ano e se o aumento estimado pelo PMA para as mortes de pessoas em situação de crise de fome se confirmar, é provável que o número de mortes diárias provocadas pelos impactos socioeconômicos da pandemia superará o dos óbitos provocados pela própria doença antes do final de 2020”, aponta a Oxfam. “É importante observar que há alguma sobreposição entre esses números, uma vez que algumas mortes causadas pela covid-19 podem ter ligação com a desnutrição.”
Auxílio emergencial
A organização lembra que no Brasil milhões de trabalhadores em situação de pobreza, sem condições básicas de proteção, perderam sua renda durante a pandemia. “Apenas 10% do auxílio financeiro prometido pelo governo federal aos trabalhadores e às empresas, via o Programa Emergencial de Suporte ao Emprego (PESE), foi distribuído até junho. Enquanto isso, grandes empresas obtiveram mais benefícios do governo do que trabalhadores e micro e pequenas empresas.”
Até o início deste mês, aponta ainda o relatório, havia sido distribuído menos da metade (47,9%) do total de auxílio emergencial para pessoas em situação de vulnerabilidade. “Os riscos de disparada da fome no país são imensos quando o Estado brasileiro falha em garantir as condições mínimas de sobrevivência a todas as pessoas impactadas pela pandemia. Não basta criar programas de proteção, o que muda a vida das pessoas é fazer os recursos chegarem na ponta”, diz a gerente de Programas e Campanhas da Oxfam Brasil, Maitê Gauto.
Ela lembra que o Brasil saiu do Mapa da Fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) em 2014, o que significou uma grande conquista. “Não podemos ser negligentes e não tomar todas as medidas para prevenir a escalada da fome no país, durante e depois que a epidemia passar”, acrescenta a gerente.
Mulheres sofrem mais
Em escala global, o problema atinge ainda mais as mulheres, “que em geral desempenham papel crucial como trabalhadoras rurais e produtoras de alimentos”. Elas já se tornam vulneráveis devido ao que a Oxfam chama de “discriminação sistêmica”: recebem menos do que os homens, pelo mesmo trabalho, e têm menos posse de terra. “As mulheres também são maioria no grupo de trabalhadores informais, que no Brasil representa cerca de 40% da população economicamente ativa e que estão sofrendo as maiores consequências econômicas da pandemia.”
A Oxfam afirma que cabe ao Estado “conter o avanço dessa doença mortal”, além de adotar iniciativas para evitar que a pandemia mate ainda mais pessoas de fome. Entre as propostas, a organização sugere o cancelamento de dívidas de países em desenvolvimento “para liberá-los a investir em redes de segurança social”. Os países devem atender ao apelo das Nações Unidas por ajuda humanitárias e “construir sistemas alimentares mais justos, mais resilientes e mais sustentáveis”.
Edição: Paulo Donizetti de Souza