Estudar vazios é parte de meu trabalho há duas décadas. E o ponto de partida é o sentido da vida, as crises existenciais do século XX e início deste milênio. O cenário é assustador, pensar a vida a partir da segunda metade do século passado é uma mescla de assombro e ilusão – pois é reveladora às mudanças no tecido social e as desoladoras esperanças que nos foram servidas como receitas de viver. Assombro porque descobrimo-nos mais frágeis e limitados embora o orgulho permanente – ilusão, porque sabemos que tudo o que fizermos é um adiar-se e que todo nosso esforço parece esfacelar-se nos interesses mundanos e materiais de outros.
Embora as barbáries, os conflitos ceifando vidas, campos de extermínio revelando nossa insensibilidade em relação a vida. Costumo dizer que lembrar Hiroshima e Nagasaki não é apenas o findar de um conflito. Não é apenas uma memória da perversidade do ego, da mente humana com duas bombas atômicas devastando territórios, dizimando milhares de vida, comprometendo a saúde de gerações, inviabilizando sonhos, abrindo uma ferida que nunca deixou de sangrar e condenando uma geração inteira as consequências físicas, materiais e existenciais – a ‘Rosa de Hiroshima’: hereditária, sem perfume, radioativa, estúpida e inválida’ nunca mais fechou.
É preciso olhar para estes fatos da história como mudanças de paradigmas no ocidente. Até ali tínhamos uma frágil certeza que morreríamos como indivíduos, aqueles dois artefatos nucleares não apenas revelaram ao mundo a capacidade de destruição e imposição de poder. As bombas desnudaram-nos para a compreensão, ali pariu a certeza que podemos desaparecer como espécie de um instante para outro. A partir de então, passamos a dialogar com a angustia diária de incertezas, embora pouco compreendida pela narcísica cultura ocidental, seja por disputas no campo das relações diplomáticas na geopolítica ou pela intencionalidade de um maluco qualquer, neste mundo de pouca sanidade.
O século XX e sua lógica urbanista, narcísica e consumista nos dessacralizou de valores fundamentais, nos coisificou como engrenagem da produção, consumo e falsos sentidos. Nos secularizou como máquinas com prazo de validade e esvaziou-nos para o sentido da vida. Não há registro de outros momentos na história humana em que se desenvolveu, produziu-se tantas coisas para tornar nossas vidas mais cômodas, tranquila e supostamente mais feliz. De outro modo, isso revelou-se insuficiente, desnecessário e aporte de insatisfação. Pois, nunca antes na história os indivíduos experimentaram aos milhões o vazio existencial, as angustias de buscas não compreendidas, a ausência de um sentido e significado para a vida e o suicídio como fuga das dores existenciais – e então, assombrosamente compreendemos o que é morrer por dentro. Mas aí, a insensibilidade falsamente nos blindou, congelou-nos até o ponto de derretimento por nossas contradições e as brutalidades de nosso ser irracional – embora a racionalidade exacerbada seja parte deste todo!
Mas tal experiência que parecia mais uma realidade vivida pelo sujeito urbano, exposto a lógica de um desenvolvimento supostamente moderno e fragilmente pós-moderno fragmentado, revelou-se antropológica e sociologicamente teia de expansão. E esta, tecida diariamente, expandida conforme a insaciável perversidade do sistema que nos individualizou, codificando-nos como número da produção e nos ‘coisificando’ como códigos de barras de valores e interesses transitórios, descartáveis. Ou seja, perdeu o valor se descarta – avançaria ainda mais.
E este que parecia um paradigma de vida urbana moderna, chega ao campo no Brasil a partir da década de 1960 no pacote da Revolução Verde. No bojo da lógica produtivista em larga escala e para circuitos longos, o homem do campo em hegemônica maioria dos que não foram vítimas da expulsão via êxodo rural, passaram a ser desconstruídos, como sujeitos de vida comunitária, social e existencial para se torna engrenagem da balança comercial.
Meio século depois aqui estou, primeiro como observador, segundo como provocador de novas leituras para o campo e por último, ensaísta pesquisador dos ‘Vazios Existenciais’ na agricultura familiar – ou seja, agora sei que não temos apenas latifúndios de terra neste país, passamos a ter latifúndios de silêncios, de vazios existenciais e sentidos para a vida na área rural. Há milhares de agricultores e agricultoras morrendo de silêncio enquanto ensaio escrever este artigo – mas como diz a letra da música ‘Notícia de Jornal’ cantada por Chico Buarque: ‘’A dor da gente não sai no jornal’’ – e complemento dizendo: as dores existenciais menos ainda.
É preciso ouvir este silêncio que grita – provindo do seio das propriedades. Pois, os camponeses cotados a desaparecer, mas que por característica culturais e sociais não desapareceram em virtude da produção subsistente e diversificada, quase uma subversão a monocultura, passam agora viver com a angustia de uma vida vazia de sentido, significado. Uma existência pulverizada de angustias, stress, depressão, silêncio nas relações comunitárias, sociais, e a pior das realidades – conviver com o suicídio como remédio as ansiedades de uma vida imersa na lógica da produção para balança comercial e o consumo como batismo e salvação existencial.
Faz-se necessário devolver não só a liberdade do homem do campo expropriada pela lógica impositiva de produzir, não o que se quer, mas o que o sistema determina. É preciso devolver-lhes o espaço da propriedade como direito de decidir sobre o que é seu. É preciso devolver a cuia de chimarrão, da celebração da vida, da convivência que lhe foram tiradas como instrumento da confraternização. Devolver-lhes o direito de sentar-se à sombra se cansado o corpo estiver, o direito de visitar a casa do vizinho mais próximo sem se sentir ameaçado pelo técnico dos pacotes tecnológicos.
É preciso devolver o direito ao convívio da vida comunitária, o direito de dormir sem o peso das preocupações com o banco que lhes ameaça pelo crédito acessado. É preciso preencher os vazios de infelicidades com a dignidade que lhes foi expropriada – e acima de tudo, ressignificar o sentido da vida com as sensibilidades saqueadas. Mais que sustentabilidade no campo é preciso felicidade. Sem isso, não haverá colheitas significativas!