“O sistema alimentar ou a soberania alimentar e nutricional só serão construídos efetivamente a partir do momento que nós tivermos fortalecido o modelo de agricultura familiar”. A afirmação é do conselheiro Marcos Rochinski, representante do grupo de trabalho organizador da 4ª Plenária do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
Durante sua fala na abertura do evento, cujo tema foi “Agricultura Familiar e Compras Públicas”, ele apresentou indicadores da atividade rural no Brasil e detalhou a importância da produção familiar camponesa. “Esse modelo é mais viável porque, além de produzir alimentos saudáveis, gera trabalho e renda”, ressalta.
Rochinski é líder na criação da Frente Sul da Agricultura Familiar dos Estados do Sul. Em entrevista ao Consea, ele ressaltou que a agricultura familiar representa a base da alimentação no país. “O agricultor familiar produz cerca de 70% dos alimentos que compõem a cesta básica do brasileiro. Quando você for comer, separe 70% daquele alimento e imagine se os outros 30% são suficientes para matar a fome. Esse é o exercício que o povo brasileiro precisa fazer”.
Quais dificuldades que o agricultor e a agricultora familiar enfrentam para produzir no Brasil?
O modelo de desenvolvimento e produção do nosso país é voltado para as grandes propriedades. Isso vai contra a agricultura familiar, mesmo com avanços significativos nos últimos anos no conjunto de políticas públicas voltadas para este setor. A primeira grande dificuldade de produção já começa pelo acesso à terra. Mesmo aqueles agricultores que possuem uma pequena propriedade têm dificuldade de regularizar seus terrenos. Isso dificulta o acesso a direitos essenciais. Outro aspecto é que é as políticas públicas desenvolvidas nos últimos anos foram bastante seletivas. Há aquele agricultor mais consolidado, com maior poder de acesso à terra e até aquisitivo, que tem acesso aos seus direitos. Por outro lado, temos aquele agricultor mais empobrecido e que necessita de maior auxílio. Esse, infelizmente, ainda continua desassistido das políticas públicas. Há ainda o problema da falta de acesso ao crédito, à assistência técnica e à comercialização.
O sistema econômico atual interfere de alguma forma?
Há um modelo que privilegia muito mais a produção de commodities, tais como o petróleo, o carvão mineral, a soja, a cana-de-açúcar, em vez de incentivar propriamente a produção de alimentos. Mesmo com políticas agrícolas existentes, como, por exemplo, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), há um impulso a uma lógica de produção ou especialização dentro de uma cadeia produtiva. O agricultor que não está organizado ou não tem na sua propriedade condições de viver em cima de uma cadeia produtiva, automaticamente acaba sendo excluído das políticas de crédito.
Qual o papel da agricultura familiar na construção de sistemas alimentares?
O sistema alimentar ou a soberania alimentar e nutricional só serão construídos efetivamente a partir do momento que nós tivermos fortalecido o modelo de agricultura familiar, que é a base da economia de milhares de municípios brasileiros. Esse modelo é responsável por 70% dos alimentos que compõem a cesta básica do brasileiro. Durante uma refeição separe 70% daquele alimento e imagine se os outros 30% são suficientes para matar a fome. Esse é o exercício que o povo brasileiro precisa fazer. O agricultor familiar também é responsável por produzir alimentos mais saudáveis, porque esses são livres de agrotóxicos. Ele convive com o meio ambiente, interage com o espaço de produção e não visa só o lucro, como é o caso dos grandes proprietários. Essa diferença de olhares e de vida é que transforma.
Os agricultores familiares têm recebido estímulo para produção?
Desde o final dos anos 90, quando foram instituídas as primeiras políticas públicas específicas para o setor, a gente avançou de forma bastante significativa. No final do governo de Fernando Henrique Cardoso, nós tínhamos um montante de aproximadamente 2 bilhões de reais aplicados em crédito rural. Já até o final do governo Dilma e início do governo Temer, tínhamos um orçamento previsto de R$ 30 bilhões. Existe um crescimento nas políticas públicas, que trouxeram técnica e desenvolvimento a muita gente, mas não conseguiu incluir a todos. Isso é um desafio.
A Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) é outra atividade importante para o desenvolvimento no campo, promovendo a melhoria da renda e produção. Como vê essa assistência?
Acredito que a assistência técnica é um pilar para o trabalho no campo. Por mais que existam políticas de crédito e de comercialização, se não houver acompanhamento técnico, sobretudo para os agricultores mais empobrecidos, dificilmente eles conseguem se organizar. Vemos com bons olhos o trabalho da Ater. Mas uma grande preocupação é que não adianta ter uma agência para cuidar especificamente da assistência técnica se não há orçamento para ela. É necessário investimento nela.
Como avalia a contribuição do PAA e Pnae?
São programas fundamentais. Tratamos o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] e o Pnae [Programa Nacional de Alimentação Escolar] como uma grande porta de entrada para o agricultor familiar se inserir no mercado. É até uma oportunidade de se inserir numa organização ou cooperativa. Isso estimula o processo de organização e possibilita que esses agricultores consigam acessar outros mercados, de venda direta, feira e entrega. Acredito que o Consea teve um papel fundamental na constituição desses programas.
O que você destaca de contribuição dos agricultores familiares no processo de construção de políticas públicas no Brasil?
O conjunto de políticas públicas que a gente construiu tem partição fundamental das organizações sociais. Destaco o papel importantíssimo do movimento sindical, dos trabalhadores da agricultura, cooperativas de produção, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), do Consea e demais categorias, que tiveram a capacidade para ajudar a formular um conjunto de ações. A grande contribuição deixada pela agricultura familiar como categoria profissional e econômica é ter a perspectiva de olhar para o futuro com condições de a gente ter um país que possa ter alimentação saudável.
Como estão os esforços por direito e espaço por parte das mulheres trabalhadoras rurais?
Programas de inclusão social, como o de Documentação da Mulher Trabalhadora, que foi coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), através da Secretaria da Mulher Trabalhadora Rural, possibilitaram reconhecer dentro da unidade familiar rural a especificidade das demandas das mulheres do campo. Também vemos o papel preponderante que a agricultora tem nas organizações. É muito comum você encontrar mulheres sendo presidentes de associações comunitárias, de cooperativas, de sindicatos, compondo os diferentes espaços de conselhos municipais, de desenvolvimento alimentar etc.
Como o Consea pode atuar no apoio ao trabalho do agricultor e da agricultora familiar?
O Conselho mais uma vez cumpre seu dever. Na plenária apresentamos uma Exposição de Motivos com referências e recomendações de alguns órgãos específicos. Espero que tudo aquilo que a gente tiver de resultado do nosso debate seja efetivamente assimilado pelo governo e que isso resulte na melhoria das políticas públicas e na melhoria da qualidade de vida das nossas famílias.