Os conhecimentos e práticas tradicionais de cultivo, que sempre foram tratados como bens comuns da humanidade, vêm sofrendo nas últimas décadas diversas ameaças legislativas que visam a apropriação dessa riqueza natural e cultural por corporações privadas. Entre outras ameaças recentes, está em discussão atualmente o Projeto de Lei (PL) 827/2015, conhecido como Projeto de Lei de Proteção aos Cultivares, que procura ampliar o controle de grandes empresas sobre o uso de sementes, plantas e mudas melhoradas.
Caso seja aprovado, a nova lei restringirá os direitos dos produtores de produzir, de conservar, de distribuir, de comercializar e de trocar as suas sementes. De acordo com a proposta, a comercialização do produto obtido na colheita dependerá de autorização do detentor da cultivar.
Ao ampliarem o controle sobre as sementes, essas empresas deterão também o controle da produção de alimentos. Isso torna os agricultores e agricultoras, comunidades quilombolas e indígenas cada vez mais dependentes do uso de agrotóxicos, transgênicos e outras tecnologias, e ao pagamento pelo uso das sementes, que atualmente são trocadas e utilizadas livremente.
O projeto viola o direito dos agricultores, estabelecido no Tratado de Recursos Fitogenéticos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), do qual o Brasil é parte, por voto do Congresso Nacional. Na prática, haverá um impacto sobre o custo de produção, a renda do agricultor e aumento dos preços ao consumidor. Haverá, ainda, impacto sobre a segurança alimentar, criando restrição de acesso aos alimentos.
Esse projeto está inserido em um contexto político marcado pela elaboração de leis derivadas da iniciativa de representantes da indústria sementeira. Assim, visa aprofundar os privilégios já existentes para esses setores e, consequentemente, retrocessos para o campo popular.
Alterações na Proteção de Cultivares
A nova deve alterar o Sistema Nacional de Sementes e Mudas (Lei 10.711/2003), que determina que a certificação de sementes pode ser realizada tanto pelo Ministério da Agricultura quanto por empresas ou produtores privados que estiverem credenciados.
Além disso, o projeto procura alterar a Lei de Proteção de Cultivares (Lei n°9.456/1997), com o objetivo de “aprimorá-la”, fazendo com que as plantas protegidas por essa lei (em forma de privilégios) não possam ser doadas, trocadas ou melhoradas sob pena de detenção, multa e apreensão dos cultivos. (Veja na tabela abaixo como o projeto de Lei deve alterar a Proteção de Cultivares que está em vigor)
A própria Lei de Cultivares já estabeleceu, no ano de 1997, que o produto da ação coletiva sobre as espécies vegetais pode se tornar propriedade. A elaboração da lei foi imposição da Convenção Internacional da UPOV (União Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais), instituindo o reconhecimento de direitos de propriedade intelectual sobre cultivares.
De acordo com a lei em vigor, para a produção e comércio de sementes deve ser solicitada autorização de quem possui direitos sobre a cultivar e pagar por essa utilização. A intenção da legislação é obrigar os agricultores a sempre comprarem novas sementes, dentro do sistema formal de sementes.
Apesar desse objetivo, a luta de agricultores e organizações camponesas permitiu que agricultores familiares, assentados da reforma agrária e povos e comunidades tradicionais, bem como as cultivares crioulas, tradicionais ou locais, ficassem de fora desse sistema e restrições.
Essa mesma pressão possibilitou que a multiplicação de sementes para doação ou troca entre pequenos agricultores não fosse abrangida pelas leis, o que torna essas práticas livres de controle. E é justamente esse livre uso das sementes, plantas e mudas que o PL 827/2015 quer atacar.
Substituição de sementes
A aprovação do projeto de lei pode fazer aumentar o número de cultivares “protegidas”, isto é, aquelas que não podem ser utilizadas livremente. Segundo o Ministério da Agricultura, da Pesca e do Abastecimento (Mapa) existem, atualmente, 1.265 cultivares protegidas, no Brasil, e quase dois mil pedidos de proteção já analisados ou em análise pelo Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC).
O que está em jogo na discussão desse projeto de lei é a preservação das sementes crioulas, cultivadas por gerações ao longo da história, e práticas tradicionais herdadas do esforço de agricultores e comunidades que há muito tempo vêm resistindo à substituição de suas sementes.
É preciso garantir que a soberania das sementes permaneça nas mãos dos agricultores e agricultoras camponeses. Para isso, é necessário fortalecer o movimento de resistência para interferir no processo de discussão legislativa, ocupando os espaços de participação existentes.
A Comissão Especial, que discutirá o parecer para deliberar sobre um novo substitutivo do relator, tem reunião marcada para o dia 1 de junho, às 14h30.