Empoderar mulheres e meninas rurais foi o tema central da 62ª Sessão da Comissão da ONU sobre a Situação das Mulheres, em Nova Iorque. Para as lideranças brasileiras, trabalho, crédito, políticas de habitação e uma vida sem violência são algumas das necessidades mais urgentes para o empoderamento das mulheres que vivem no campo, na floresta e em regiões de águas.
Para Maria da Graça Amorim, coordenadora de Mulheres da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (Contraf Brasil) e coordenadora geral e da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Maranhão (FETRAF-MA), “um grande desafio para as mulheres no meio rural é a construção de políticas públicas para combater a desigualdade no campo, que está relacionada à pobreza rural. Os governantes precisam se atentar que essas políticas estão em todas as pautas de reivindicações das mulheres do campo, da floresta e das águas”.
Maria da Graça destaca que “o empoderamento das mulheres do campo também exige políticas diferenciadas de assistência técnica e extensão rural. Muitas vezes, o que as mulheres querem não é o mesmo que os maridos e filhos querem”. Outra demanda é que seja retomado o programa de habitação rural, “importantíssimo para garantir autonomia, empoderamento e se livrar da violência”, afirma.
Para Maria da Graça, “a ONU acertou em decretar este ano como o da mulher rural. Mas é preciso fazer um monitoramento das políticas em curso, porque às vezes a realidade não se efetiva”. A ativista defende, ainda, que as entidades das Nações Unidas atuem em conjunto com a diversidade de articulações de mulheres, marchas, jornadas e organizações que existem nas áreas rurais do país.
A expectativa de Maria da Graça é que “a ONU consiga chegar a todos os grupos e segmentos estratégicos que trabalham as questões das mulheres e olhar essa realidade. E que a gente consiga ter uma plataforma para construir um processo de empoderamento das mulheres do campo, da floresta e das águas para além deste ano”.
Mazé Morais, secretária de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), faz uma avaliação das políticas públicas. Para ela, “vivenciamos um momento difícil, com muitos retrocessos em direitos. E nós do campo temos sentido muito fortemente essa realidade na pele. Desde a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário e sua transformação em Secretaria, a redução dos recursos dos programas de enfrentamento à violência, o fato de a Casa da Mulher Brasileira não ter sido aberta em todos os estados, o que era uma pauta da nossa Marcha das Margaridas. Muitas vezes, as mulheres não têm onde recorrer e nem segurança para fazer uma denúncia de violência contra elas. Outra questão para nós é a questão da documentação das trabalhadoras rurais”.
A secretária da Contag tem expectativa positiva sobre a CSW62. “O espaço da CSW é um momento muito importante para globalizar a nossa luta como mulheres trabalhadoras rurais. Temos uma expectativa muito grande em encaminhamentos positivos desde o debate da saúde, ao enfrentamento à violência, à questão agroecológica”, completa Mazé Morais.
Ação da delegação brasileira – Chefa da delegação brasileira na CSW62, a secretária de Políticas para as Mulheres da Secretaria de Governo da Presidência da República, Fátima Pelaes, aponta que “a transversalização da temática de gênero é essencial para alcançarmos o desenvolvimento sustentável, e para erradicar a pobreza, a fome e a desnutrição, promover a segurança alimentar e nutricional, fortalecer as economias locais e regionais, consolidar a paz, o progresso e a justiça social”.
Iniciativas de fomento à autonomia econômica e enfrentamento da violência de gênero também são parte das ações do governo brasileiro, como o projeto de cooperação Sul-Sul desenvolvido pelo Brasil e Moçambique. O projeto teve apoio das agências da ONU e promoveu o intercâmbio de boas práticas entre governos e sociedade civil, visando o enfrentamento à violência contra as mulheres e a promoção do empoderamento econômico feminino.
Dentre as boas práticas do Brasil estão: Programa Nacional de Documentação das Trabalhadoras Rurais, Programa Água para Todos e Todas; Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) para Mulheres, Pronaf e PAA – todas são resultado da mobilização das trabalhadoras rurais e estão elencadas no Encarte Brasil “Mais igualdade para as mulheres brasileiras: caminhos de transformação econômica e social” do Progresso das Mulheres no Mundo, editado pela ONU Mulheres. Outra iniciativa de relevo é o Selo de Identificação da Participação da Agricultura Familiar, para valorizar os produtos produzidos por mulheres dedicadas à agricultura familiar e uma forma de dar visibilidade a sua produção.
No ano passado, o Brasil participou da campanha da ONU pelo empoderamento das mulheres rurais, promovida pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e da Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar no Mercosul (Reaf). Em 2017, sob o lema #MulheresRurais, mulheres com direitos, a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (Sead) abordou o tema das mais de 14 milhões de brasileiras que vivem em regiões de lavouras, comunidades quilombolas e indígenas, e nas reservas extrativistas. Estima-se que 45% da produção agrícola brasileira é feita por mulheres. Segundo o Censo Agropecuário de 2006, 12,68% dos estabelecimentos rurais têm mulheres como responsáveis, bem como 16% dos estabelecimentos da agricultura familiar.
Valorização dos saberes e das culturas indígenas – Angela Kaxuyana, da Coordenação das Organizações dos Indígenas Amazônia Brasileira (COIAB) e articuladora da Fundação Nacional do Índio (Funai) na região amazônica, lembra que “quando se fala de mulheres rurais, o primeiro ponto que temos a considerar é a diversidade e a especificidade das mulheres que vivem na condição e no meio rural – mulheres, indígenas, negras, brancas, ciganas. Enfim, e não categorizar mulheres rurais e não rurais é um pressuposto inicial. Por exemplo, nós, mulheres indígenas, não nos sentimos contempladas em nos categorizar como mulheres rurais, nosso contexto de vivência é outro em relação às territorialidades, a nossa defesa enquanto povos indígenas é exatamente continuar defendendo nossos territórios livres de grandes avanços ditos de desenvolvimento, que, na verdade, são a destruição das nossas nascentes dos rios, das matas e consequentemente do nosso modo de vida”.
Angela Kaxuyana também integra a Rede Voz das Mulheres Indígenas do Brasil. A líder indígena ressalta que “a efetividade dos direitos dessas mulheres é o próprio cumprimento dos direitos delas respeitando a diversidade. Muitas dessas mulheres foram ‘empurradas’ cada vez mais para as áreas onde estão hoje. A 62ª CSW tem como desafio o enfrentamento dessas situações exatamente com esse olhar de diferentes ângulos”.
Kaxuyana destaca, ainda, que “no Brasil, o contexto é ainda mais específico, quando falamos de área rural” e observa que maioria dos territórios indígenas está fora de grandes centros urbanos. “E, mesmo que haja uma relação forte nessa questão da produção agrícola, o que muitas vezes faz com que haja essa separação do rural e urbano, mulheres que vivem nos centros urbanos também são mulheres indígenas, claro cada povo, cada região tem bioma com a sua especificidade. Muitas mulheres indígenas ditas da área urbana, estão lá, não porque resolveram sair dos territórios indígenas e morar na cidade. Em muitos casos, em muitos estados brasileiros, o crescimento desordenado e de grandes construções avançaram para cima dos territórios indígenas, sufocando assim aldeias e a territorialidade”, acrescenta.
Mulheres quilombolas – Givânia Silva, da Coordenação Nacional de Quilombos (Conaq) e integrante do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, chama atenção para a ofensiva de violência num contexto de avanço de mobilização política. “Se, por um lado, o movimento de mulheres negras tem crescido bastante e pautado a sociedade a partir de questões reais, por outro lado vemos uma ofensiva da truculência do machismo e do racismo. Nunca se matou tanta mulheres negras, tantas meninas, tantas lideranças quilombolas, tantas jovens negras. Conforme o movimento cresce, tem se aflorado o externar do racismo, principalmente o racismo institucional. Somos nós mulheres negras que morremos nas filas dos hospitais, em trabalho de parto, assassinadas nas ruas – como foi a Marielle – mas não temos outro caminho a não ser continuar lutando. Passamos 14 anos sob um questionamento da constitucionalidade da política de demarcação quilombola, mas a vitória no STF confirma que a luta é o caminho da reafirmação da nossa identidade, do nosso direito de existir”, afirma.
De acordo com Givânia Silva, o tema central da CSW 62 coloca em discussão gênero e territorialidades. “Em relação à CSW, considero um avanço importante a gente poder discutir questões tão fundantes quanto o território. No Brasil nos acostumamos a discutir a questão da terra e do território especialmente a partir da perspectiva das mulheres do campo, o que é um equívoco. Porque, o que são as favelas, senão a questão territorial? Além disso, precisamos mudar a lógica de nossa visão da nossa ruralidade, ou das nossas ruralidades, discutir que tipo de realidades temos, que a questão fundiária nos expulsou do campo e nos empurrou para as cidades, e nelas, para as favelas. Então, é preciso compreender que o campo é mais que uma localização geográfica. E debater isso na Comissão é fundamental”, completa.
Violência de gênero na zona rural – A violência de gênero no campo, nas florestas e nas águas é outra área de preocupação das mulheres rurais do Brasil. Para Maria da Graça Amorim, coordenadora de Mulheres da Conjuntura Política Nacional para a Agricultura Familiar (Contraf Brasil) e coordenadora geral da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Maranhão (FETRAF-MA), a situação se agrava devido ao isolamento das vítimas. “No campo, as mulheres sofrem mais, inclusive porque estão mais distantes até de registrar uma ocorrência em caso de violência doméstica, por exemplo. A maioria dos municípios não tem nem delegacia para registro”, aponta Maria.
Além da violência de gênero, que tem como ponto alto os feminicídios, os crimes cujas circunstâncias apontam para atos políticos contra mulheres ativistas de direitos humanos vêm se tornando parte da realidade nacional.
Assassinatos de lideranças rurais – Entre os casos mais recentes, está o de Marineuza Lopes, de 37 anos, assassinada em fevereiro deste ano enquanto colhia milho com o marido em uma fazenda na área rural de Amambai (MS). A presidenta da União Nacional de Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária do Mato Grosso, Terezinha Rios Pedrosa, de 56 anos, e o marido Aloísio da Silva Lara foram assassinados no município de Nossa Senhora do Livramento (MT), em setembro de 2017. Em junho daquele ano, a líder quilombola Maria Trindade da Silva Costa, de 68 anos, foi encontrada assassinada na zona rural da cidade de Moju (PA). Kátia Martins, presidenta da Associação dos Trabalhadores do Assentamento 1º de Janeiro, foi morta, em maio de 2017, na frente do neto de apenas oito anos, em Castanhal (PA).
Em janeiro de 2018, a liderança indígena Vanderlângia Pereira, de 21 anos, da etnia Kaxinawá, foi morta com um golpe de facão na frente da filha de dois anos, no município de Feijó (AC). Em 2014, dias após organizar protestos em Brasília contra a Proposta de Emenda Constitucional que altera o critério de demarcação de territórios indígenas, a líder kaiowá Marinalva Manoel, 27, foi assassinada a golpes de faca em Dourados (MS).
Francisca das Chagas Silva, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Miranda do Norte, no Maranhão, foi assassinada com requintes de crueldade, aos 34 anos, na em fevereiro de 2016, próximo ao povoado quilombola de Joaquim Maria, onde era liderança.
Em janeiro de 2016, Nilce Magalhães, líder dos pescadores e ativista do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) foi assassinada, em Porto Velho (RO), e teve o corpo jogado em uma barragem com mãos e pés amarrados. Em novembro de 2017, Alexandra de Oliveira, de 40 anos, foi assassinada em uma emboscada montada pelo marido em uma estrada rural no município de São Pedro do Turvo (SP). Também em junho de 2017, Helen Moreira foi vítima de feminicídio na região do Quilombo Ilha em Vera Cruz (BA).
Em outros países da América Latina e Caribe, os assassinatos de mulheres rurais também são uma realidade constante, a exemplo dos óbitos das ativistas ambientais Yolanda Maturana, em fevereiro deste ano na Colômbia, e Berta Cáceres, em 2015, em Honduras.
Fonte: ONU Mulheres Brasil