CARTA AO BRASIL
Medida provisória nº 759/2016:
A desconstrução da Regularização Fundiária no Brasil
Introdução
A presente carta tem o objetivo de convocar ao engajamento os movimentos sociais brasileiros e todas e todos que acreditam na luta pela Reforma Urbana e Agrária, para que pressionemos o Governo Federal, exigindo que seja retirada da pauta do Congresso Nacional a Medida Provisória nº 759/2016 e que se promova um amplo debate sobre o direito à posse e à propriedade, pautado nos princípios constitucionais, nas garantias individuais e coletivas de trabalhadores rurais e urbanos, e no princípio da função social da propriedade, na cidade, no campo e na floresta.
Política Nacional de Regularização Fundiária: uma construção democrática
Desde a década de 70 os grandes centros urbanos foram alvo de notável crescimento populacional, e com ele o surgimento de assentamentos informais em todo o país, que se incorporaram nas favelas, áreas públicas ocupadas, loteamentos informais e conjuntos habitacionais implantados pelo poder público de forma irregular. Na época, a Lei 6.766/1979 deu os primeiros passos para o reconhecimento do direito à regularização fundiária dos loteamentos populares das periferias urbanas.
A lógica desordenada e excludente do crescimento urbano resultou em mais de 11 milhões de pessoas vivendo em assentamentos informais no país, cerca de 6% da população brasileira. Essa realidade se apresenta como um desafio para as três esferas de governo, sobretudo no que diz respeito à introdução da regularização fundiária como uma das ações prioritárias da política habitacional e de acesso a terra.
Em 2001, foi aprovado o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001), resultado do acúmulo de décadas de debate público com inúmeros setores da sociedade. O Estatuto regulamentou o capítulo da Política Urbana da Constituição Federal de 1988, regulamentando o princípio da função social da propriedade e do planejamento territorial participativo. Definiu como uma de suas normas gerais a “regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa” (art. 4º). Após amplo debate, consolidou-se na última década o marco legal da Política Nacional de Regularização Fundiária.
Em 2007, com a Lei 11.481/2007, a antiga e esparsa legislação do patrimônio da União foi atualizada e adequada à Constituição de 1988 e ao Estatuto da Cidade, munindo a União de instrumentos para a execução da regularização fundiária de interesse social. São exemplos desta modernização que democratizou o acesso à propriedade pública, a previsão expressa da Concessão de Uso Especial Para Fins de Moradia (art. 22-A da Lei 9.636/1998), a isenção de taxas com ampliação da população de baixa renda para aqueles com até 5 salários mínimos mensais, a ampliação das hipóteses de interesse social e da aplicação da Concessão de Direitos Real de Uso aos imóveis públicos federais. No ano seguinte a Lei 11.952/2009, criou o Programa Terra Legal para a Regularização Fundiária de áreas da União na Amazônia.
Também em 2009 o Brasil passou a contar com uma legislação nacional com regras gerais para Regularização Fundiária Urbana (Capítulo III da Lei Federal nº 11.977). Esta regulação nacional, lei 11977/2009, orientou e instrumentalizou os municípios brasileiros para a regularização fundiária, através dos artigos 53 a 68, da seção 2, que tratam da regularização fundiária de interesse social e específico através da Demarcação Urbanística e foram revogados pela MP 759. A Lei 11977/2009 é autoaplicável, ou seja, não carece da edição de normas locais para sua imediata aplicação nem de decretos ou regulamentos posteriores. Os principais avanços trazidos por esta legislação foram:
Contudo, em 22 de dezembro - apagar das luzes de 2016, foi publicada a MP 759 que destrói toda a construção de anos de trabalho em regularização fundiária ao impor, entre outros destaques:
A MP 759 traz em seu texto uma série de inconstitucionalidades, desrespeitando competências federativas e atentando contra a probidade administrativa na gestão da cidade e do patrimônio público, independente de sua função social. Evidencia-se, portanto, que:
Riscos e retrocessos de direitos - A MP 759 rompe com vários regimes jurídicos de acesso à terra, construídos com participação popular. Ela também promove a liquidação do patrimônio da União e coloca em risco a Floresta Amazônica. A MP 759 foi editada sem consulta pública às populações atingidas, sem diálogo com os diversos segmentos que compõe o Conselho Nacional das Cidades, bem como o Ministério Público e a Defensoria Pública, sem ouvir os movimentos sociais, sem ouvir profissionais multidisciplinares da União, Estados e Municípios que trabalham com as políticas de regularização fundiária rural e urbana. Corrompida por inconstitucionalidades, a MP 759 promete falaciosamente algo que não vai cumprir, pois remete maior parte da matéria a regulamentações futuras. Temas fundamentais que deveriam ser previstos agora, ficam postergados para disciplina por “atos” do Governo Federal.
Regularização fundiária é direito, e não pretexto para a concentração fundiária e anistia a loteamentos e condomínios irregulares de alto padrão - A MP 759 cria tratamento desigual entre os ricos (Reurb-E) e pobres (Reurb-S), flexibilizando a regularização de loteamentos e condomínios fechados de alto padrão. Editada em 22/12/2016, a MP 759 é um verdadeiro presente de natal” para falsos loteadores das áreas urbanas, desmatadores e grileiros de terras públicas na área rural, a ainda:
Privatização em massa do Patrimônio da União - A doação e venda dos imóveis da União dependem de critérios legais para que o interesse público e social seja atendido com o rompimento do domínio público. A MP pelo instrumento da “legitimação fundiária” permite a privatização sem nenhum critério legal, por mero ato discricionário do Poder Executivo. Possibilitam-se a regularização de condomínios de alto-padrão, loteamentos fechados em áreas federais, sem a devida exigência de contrapartidas ambientais. Um dos grandes negócios da MP 759 é promover a liquidação do patrimônio da União (terras e águas federais) em prejuízo de sua função socioambiental, ou seja, a MP 759 entrega o patrimônio público nacional ao mercado imobiliário e aos grandes empreendedores público-privados.
Anistia a desmatadores e grileiros na Amazônia - A massiva crítica ambiental à MP 759 alerta para o fato de que as terras públicas da Amazônia estarão, mais do que nunca, sujeitas à grilagem, neste caso favorecida pela MP 759 que amplia prazo para “regularizar” invasões e grilagens inclusive tolerando o desmatamento como prova de ocupação. A MP 759 deturpa os critérios de regularização fundiária do Programa Terra Legal na Amazônia (Lei 11.952/2009) permitindo a regularização em favor de quem já é proprietário de outro imóvel e para ocupantes após 2004, sem cadeia possessória contínua. Passo contínuo à privatização de terras da União na Amazônia, almeja-se a liberação da venda de terras rurais a estrangeiros, proposta pelo Projeto de Lei nº 4.059/2012, apoiado pelo atual Governo.
Ameaça à Política Nacional de Reforma Agrária: No tocante à regularização fundiária rural, a MP 759 é marcada pela mercantilização da terra e desoneração do INCRA das obrigações junto às famílias assentadas. Altera a Lei nº 8.929/1993 (Lei da Reforma Agrária) e a Lei nº 13.001/2014 (sobre créditos de famílias assentadas). Na contramão do interesse público nacional e regional que envolve a matéria, a MP 759 tende a “municipalização” da seleção de famílias beneficiárias, fortalecendo as oligarquias locais.
A MP 759 e a aversão às lutas populares. Na cartilha da MP 759 “Quem luta, tá morto”: A ofensiva do artigo da 62 impõe um retrocesso de garantia de direito à justiça, o que totalmente é inconstitucional! Nesta mesma lógica, são preteridas as famílias acampadas nos assentamentos da Reforma Agrária. Nas situações de conflito fundiário urbano judicializado, assentamentos organizados estão sob a imposição da MP 759 impedidos de:
A financeirização da terra urbana e rural: A MP 759 não pode se impor à parte do contexto político e socioeconômico Brasileiros. A recente promulgação da PEC nº 241, que congela os gastos públicos por 20 anos, somada aos cortes no Programa Minha Casa Minha Vida para as menores faixas de renda sinalizam para um cada vez maior afastamento do Estado brasileiro no cumprimento das funções públicas e sua substituição pela iniciativa e negócios privados. A MP reforça a financeirização do espaço urbano e rural. Fortalecendo ainda mais os negócios bancários e, no longo prazo, a intensificação do mercado imobiliário e fundiário excludente, sobretudo, nas metrópoles brasileiras. A fórmula baseada na mera entrega de títulos conduz ainda ao fortalecimento do conceito privatista da terra e a concepção da propriedade como mero direito, fatores responsáveis pela tradição patrimonialista que constitui e mantém as elites fundiárias no Brasil.
Não à MP 759!
Nenhum Direito a Menos
Regularização fundiária é um direito
Em defesa da democracia na cidade e no campo
Pela função social da propriedade, na cidade, no campo e na floresta!
Assinam esta Carta
1º Defensoria Pública Especializada em Atendimento Fundiário do Estado do Amazonas
ABEA – Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo
Acesso - Cidadania e Direitos e Humanos
Actionaid Brasil
AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros
Ambiente Arquitetura
Associação de Apoio ao Adolescente e à Família "Mundo Novo"
Associação de Moradores e Trabalhadores da Vila Primeiro de Outubro e Adjacências – Guaianazes
Associação dos Movimentos de Moradia da Região Sudeste – SP
Brasil Habitat - projeto e implantação para o desenvolvimento do ambiente habitacional e urbano
CAAP - Centro de Assessoria à Autogestão Popular
Caritas Brasil
Casa da Mulher do Nordeste
CDES - Centro de Direitos Econômicos e Sociais
CEAS - Centro de Estudos e Ação Social
Cearah Periferia
CEDECA - Sociedade Civil do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco
CENDHEC - Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social
Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
Centro Popular de Direitos Humanos
CFESS - Conselho Federal de Serviço Social
CMP - Central de Movimentos Populares
CMP - Central de Movimentos Populares – CMP SP
CNS - Conselho Nacional das Populações Extrativistas
Coletivo A Cidade Que Queremos – Porto Alegre
CONAM – Confederação Nacional de Associações de Moradores
CONAQ - Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares
CONTRAF/BRASIL - Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil
Coordenação Estadual das Promotoras Legais Populares do Estado de São Paulo
Democracia Corinthiana
Direitos Urbanos
Escritório Modelo da PUC/SP
Fábrica Ocupada Flaskô
FAOC – Fórum Urbano da Amazônia Ocidental
FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FENAE - Federação Nacional das Associações de Empregados da Caixa Econômica
FENEA - Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil
FISENGE - Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenharia
FNA - Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas
FNRU – Fórum Nacional de Reforma Urbana
FNeRU – Fórum Nordeste de Reforma Urbana
Fórum Municipal de Defesa dos Direitos Humanos de Campinas
Fórum Sul de Reforma Urbana
Frente de Luta por Moradia - SP
Frente de Luta por Moradia – Fortaleza/CE
Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião
Gênesis - Cooperativa de Trabalho de Consultores e Assessores à Gestão Socioambiental
Geografar - Pós-GEO/UFBA
Grupo de Pesquisa Lugar Comum - FAUFBA
IAB-BA –Instituto de Arquitetos do Brasil Departamento da Bahia
IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
IBDU - Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico
Iniciativa Internacional da Carta da Terra
Instituto Velho Chico de Defesa do Meio Ambiente e Direitos Transindividuais
Integra Urbano
ISA – Instituto Socioambiental
LabCidade - Laboratório do Espaço Público e Direito à Cidade
LabHab - Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos
LEHAB/UFC - Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará
MCP - Movimento de Cultura Popular
MDF - Movimento de Defesa dos Favelados - Região Episcopal Belém
MLB - Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas
MNLM – Movimento Nacional de Luta pela Moradia
MOTU - Movimento Organizado dos Trabalhadores Urbanos
Movimento Chega de Demolir Porto Alegre
MPA - Movimento dos Pequenos Agricultores
MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
MTD - Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos
NDHTC - Núcleo de Direitos Humanos e Tutela Coletiva da Defensoria Pública do Estado do Piauí
Núcleo de Prevenção, Mediação e Regularização Fundiária da Defensoria Pública do Estado da Bahia
Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
NUDAM - Núcleo de Defesa Agrária e Moradia / Defensoria Pública do Espírito Santo
NUDEAM - Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo
NUDEAM - Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul
NUTH - Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
Ocupação Vila Soma
Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
PEABIRU - Trabalhos Comunitários e Ambientais
PÓLIS – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais
Rede Interação
Rede Observatório das Metrópoles
RENAP - Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares de São Paulo
RENAP - Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares do Rio Grande do Sul Repórter Brasil
SASP - Sindicato dos Arquitetos do Estado de São Paulo
Sindicato dos Químicos de São Paulo
Terra de Direitos
ULCM - União das Lutas de Cortiço e Moradia
UMECC - União Municipal de Entidades Comunitárias de Campinas
UMMSP - União dos Movimentos de Moradia de São Paulo
União de Mulheres de São Paulo
Unificação das Lutas de Cortiços e Moradia - SP
UNMP - União Nacional por Moradia Popular
Usina-CTAH